O paradoxo de Tirso: o frade que inventou o libertino

Quando o moralista se fez dramaturgo e o pecado ganhou forma teatral

O paradoxo de Tirso: o frade que inventou o libertino

Tirso de Molina, retrato por fray Antonio Manuel de Hartalejo · Biblioteca Nacional de España

Como pode um frade criar o mito do sedutor? A pergunta atravessa os séculos. Gabriel Téllez, o mercedário que o mundo conhece como Tirso de Molina (Madrid, 1579 – Soria?, 1648), é o autor de El burlador de Sevilla y convidado de piedra (c. 1616–1620), a peça que deu à literatura europeia o arquétipo de Don Juan. O paradoxo é central e fascinante: um religioso que professava a obediência e a penitência cria o mais impetuoso símbolo da desobediência e do prazer. O frade, ao inventar o libertino, revelou o nervo oculto do Barroco — a convivência do sagrado e do profano dentro de um mesmo corpo.

A Espanha do século XVII oscilava entre o esplendor imperial e a saturação moral. Era o tempo em que o teatro servia de catequese e de catarse; o púlpito e o palco falavam a mesma língua, embora com intenções opostas. Em 1625, Tirso foi censurado por “comedias profanas y de malos ejemplos” e desterrado a um mosteiro. O exílio, porém, não o silenciou. Ao contrário: intensificou a sua lucidez. El burlador de Sevilla nasce desse conflito entre fé e desejo — um espelho em que a sociedade católica se contempla, fascinada e temerosa, diante do próprio pecado.

No centro da peça está Don Juan Tenorio, um nobre arrogante que seduz mulheres com promessas falsas e despreza as consequências de seus atos — até ser confrontado com a morte, literalmente convidada para jantar. Tirso o concebe como “tipo de grande senhor, o tipo da juventude em si mesma, com uma veia de loucura”, segundo observou o crítico Miguel Romera Navarro, que via na obra “uma sucessão de quadros impressionistas, unificados apenas pela figura central do Burlador, viajante incansável, sempre em movimento”. Essa mobilidade faz de Don Juan um mito universal. “Com todos os seus vícios”, continua Romera Navarro, “ele não resulta repulsivo: tal é sua grandeza. Despreza os convencionalismos sociais e forja sua própria moral; crê em Deus, mas o seu temperamento atropela todas as suas crenças.”

É justamente essa tensão entre fé e transgressão que mais fascina os estudiosos. Como escreveu o hispanista francês Joseph Pérez (1931–2020):

O Don Juan de Tirso não é apenas um libertino; ele é um desafio à ordem divina. Ao fazer isso, Tirso expõe, com aguda consciência teológica, os limites da misericórdia e da justiça.

JOSEPH PÉREZ (1931–2020), HISTORIADOR FRANCÊS

Essa leitura ilumina o núcleo paradoxal do drama: o pecado como forma de interrogar o próprio Deus, a rebeldia como espelho da graça. Don Juan não é só o vilão da peça — é o teste moral de toda uma civilização.

O castigo do protagonista — a estátua que ganha vida e o arrasta ao inferno — é o ponto culminante dessa parábola moral. Mas o inferno, aqui, não é simples punição teológica; é o retorno da ordem. Tirso transforma o julgamento divino em metáfora política: o abuso do poder, cedo ou tarde, se volta contra o abusador. Don Juan é o homem que confunde liberdade com privilégio. Um século depois, Montesquieu (1689–1755) definiria, em Do Espírito das Leis (1748), que “não há tirania maior que a cometida em nome da lei e da justiça”. O filósofo descreve o mesmo mal que o frade dramatizara: o poder que, sem limite, se converte em tirania — seja no palácio, seja na alma.

A força do mito criado por Tirso foi tão intensa que atravessou fronteiras e séculos. Um de seus ecos mais notórios é a ópera Don Giovanni, composta por Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791) e estreada em 1787, em Praga, com libreto de Lorenzo Da Ponte (1749–1838). A obra recria o arquétipo do sedutor impenitente com uma profundidade musical e dramática singular. A célebre cena em que a estátua do Comendador, morto por Don Giovanni, aceita o convite para jantar e o conduz à condenação eterna é inspirada diretamente no texto original de Tirso — prova de que o frade espanhol não apenas criou um personagem, mas fundou uma tradição espiritual e estética que ecoa na cultura europeia até hoje.

O teatro de Tirso é a tradução barroca dessa consciência: nele, moral e espetáculo se confundem. O frade, em vez de pregar a virtude, a encena — e ao encená-la, a questiona. “A comédia é o traslado da vida”, escreveu ele em El vergonzoso en palacio. O palco, portanto, não é sermão, mas espelho. E o espelho barroco devolve uma imagem inquieta: o pecado é também método de conhecimento. As personagens de Tirso, especialmente as femininas, vivem no limite da obediência e da astúcia; nelas, a virtude se disfarça para sobreviver. Como disse Romera Navarro, “as heroínas de Tirso lutam pelo objeto de seu carinho, resultando atrevidas, ousadas, incansáveis”.

Ao lado do Burlador, Tirso escreveu outro drama teológico, El condenado por desconfiado (1613–1616), igualmente centrado no mistério da graça e da liberdade. A tensão entre predestinação e escolha, fé e dúvida, mostra o quanto o frade-dramaturgo pensava a moral não como dogma, mas como enigma. Em ambos os textos, a questão é a mesma: pode o homem salvar-se por si mesmo? E, sobretudo, pode a lei divina ser compreendida sem a experiência da queda?

No fim, o teatro de Tirso não julga — revela. O frade e o libertino são apenas espelhos de uma mesma vertigem: a do homem que, acreditando vencer o destino, frequentemente apenas o encena.

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