Entre ninfas e profecias: o mundo reinventado de Il Pastor Fido

A obra-prima de Guarini que incendiou debates, encantou plateias e moldou séculos de cena e música.

Entre ninfas e profecias: o mundo reinventado de Il Pastor Fido

PINTURA DO MUSEO DEL PRADO, MADRID

Giovanni Battista Guarini não escreveu apenas um drama; ele esculpiu uma sinfonia de versos que atravessaram gerações e reinventaram o teatro europeu. Il Pastor Fido (O Pastor Fiel), composto entre 1580 e 1585 e publicado em 1590, tornou-se rapidamente um fenômeno literário e cultural. O poeta, diplomata e cortesão da sofisticada corte dos Este ousou interromper o domínio aristotélico da separação entre tragédia e comédia, lançando-se na incômoda e inovadora tragicomédia — um gênero híbrido que desafiava os cânones clássicos da época.

A peça se passa na Arcádia, esse espaço idealizado da tradição pastoril, e acompanha o drama de amores cruzados, profecias e deveres sacrificiais. Mas o enredo, embora envolvente, é apenas a superfície de um experimento formal mais profundo. Guarini cria um jogo de tensões entre o sublime e o gracioso, o trágico e o risonho, o ideal e o real. O resultado foi uma obra que dividiu opiniões, inflamou academias e, ainda assim, conquistou multidões.

Rara edição bilíngue (italiano/francês) de Il Pastor Fido (Claude Barbin, Paris, 1672). Encadernação original em couro, tipografia nítida e gravuras preservadas — exemplar histórico disponível no acervo da Inactual.

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A recepção crítica de Il Pastor Fido foi marcada por intensa controvérsia. Ainda no século XVI, intelectuais como Giason de Nores atacaram a obra por considerarem sua estrutura “monstruosa e desproporcional”, uma violação das regras dramáticas herdadas de Aristóteles. Em resposta, Guarini escreveu o Compendio della poesia tragicomica (1601), no qual defendia que a tragicomédia era perfeitamente legítima, pois refletia melhor as complexidades e ambivalências da condição humana. Esse debate não ficou restrito ao seu tempo.

No século XX, o estudioso americano Nicolas J. Perella, professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, e uma das maiores autoridades na fortuna crítica da peça, escreveu:

Guarini operou uma transgressão estética fundamental ao unir o maravilhoso e o histórico, forçando a tradição dramática a repensar suas fronteiras. Essa fusão ameaçava não apenas a teoria poética clássica, mas também o equilíbrio epistemológico e moral da cultura renascentista.

(Perella, The Critical Fortune of Battista Guarini’s “Il Pastor Fido”, 1973).

Essa “transgressão”, no entanto, não gerou apenas debates. Il Pastor Fido foi um verdadeiro sucesso editorial e cultural. Entre os séculos XVI e XVII, teve mais de cem edições publicadas, foi traduzido em várias línguas e se tornou leitura essencial entre as elites letradas da Europa. Sua influência não parou no teatro: a peça foi fonte de inspiração para cerca de 550 madrigais compostos por mais de 120 músicos, incluindo Monteverdi e Giovanni de Macque. No século XVIII, o próprio Händel compôs uma ópera com o mesmo nome, reforçando a longevidade musical do texto de Guarini.

Além do impacto estético e musical, o dramaturgo contribuiu com uma nova ideia sobre o papel do teatro na sociedade. Como observa o Grove Dictionary of Music and Musicians, “Guarini legitimou uma terceira forma dramática que influenciou profundamente o estilo e o conteúdo dos libretos de ópera e cantata desde seu surgimento até os trabalhos de Metastasio e Händel”. Ao defender a tragicomédia como gênero, Guarini propunha não apenas uma estrutura dramática inovadora, mas uma experiência emocional que escapava do binarismo trágico-cômico. Seu objetivo não era “exorcizar” emoções, como a tragédia clássica propunha, mas “banir a melancolia”, oferecendo ao público uma experiência que flertava com o medo, mas se resolvia em harmonia.

Joseph Loewenstein, outro estudioso da obra, chama atenção para a célebre “cena do eco”, em que a personagem Amarilli dialoga com a ninfa Eco. Ele a interpreta como “emblemática da tensão entre o isolamento trágico e a reintegração cômica”, uma metáfora delicada sobre a possibilidade de reconciliação entre as polaridades humanas. Trata-se de um microcosmo poético da própria estrutura da peça: um jogo de reflexos entre desespero e esperança, entre silêncio e resposta.

Ao fim, Il Pastor Fido não é apenas um exemplo do gosto renascentista pela linguagem elevada e pelos amores idealizados. É, antes de tudo, um laboratório formal de ambiguidade e beleza, onde Guarini experimenta com os limites da tradição para criar algo essencialmente novo. Sua ousadia em borrar fronteiras o inscreve não apenas como um poeta de corte, mas como um verdadeiro transformador da literatura europeia.

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