Nem eu sou eu: quem é, então, José Ortega y Gasset?

Nem eu sou eu: quem é, então, José Ortega y Gasset?

Poucos nomes na história da filosofia e da literatura ibérica causam tanto desconforto intelectual quanto o de José Ortega y Gasset. Desconforto no melhor sentido: o de tirar o leitor do lugar-comum e colocá-lo diante do espelho filosófico da própria existência. Afinal, como compreender um pensador que diz, sem pestanejar: "Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo"? Ortega parece ter escrito não apenas para ser lido, mas para ser redescoberto — como um livro empoeirado numa estante antiga, cuja capa oculta um universo de ideias ainda por explorar.

Nascido em 9 de maio de 1883, em Madrid, Ortega cresceu entre livros, jornalistas e debates políticos. Filho do influente jornalista José Ortega Munilla e neto de um proeminente editor, ele se formou em Filosofia e Letras pela Universidade Central de Madrid, antes de completar seus estudos na escola neokantiana de Marburgo, na Alemanha. Essa imersão no pensamento alemão consolidou seu rigor filosófico, mas foi sua alma espanhola — irônica, inquieta e elegante — que moldou seu estilo inconfundível.

A genialidade de Ortega estava em unir filosofia, literatura e jornalismo. Em sua obra mais conhecida, “La rebelión de las masas” (1930), ele denuncia a ascensão do "homem-massa", símbolo da mediocridade, da ausência de esforço e da cultura empobrecida. Mas Ortega não é um elitista puro: sua crítica visa preservar o papel vital da cultura e da responsabilidade individual diante do avanço das massas despersonalizadas.

"El hombre masa no es el hombre trabajador, sino el hombre cuya alma es perezosa y vacía, incapaz de lucha interior."
— Ortega y Gasset, La rebelión de las masas (1930)

Clássico maior da filosofia espanhola, El Espectador condensa a mirada crítica de Ortega sobre cultura e modernidade. Primeira edição Biblioteca Nueva (1950), elegante e íntegra, com dedicatória de 1958 — no acervo da Inactual.

Edição ampliada de Sobre el Amor (Plenitud, 1963), com reproduções de obras de Botticelli, El Greco e Leonardo da Vinci. Filosofia e arte em harmonia

Fugindo da filosofia sistemática, Ortega preferia o ensaio como forma de pensamento vivo. Criador da "razón vital", ele via o pensamento como algo inseparável da vida. Escreveu dezenas de ensaios que dialogavam com a política, a arte, a ciência e a literatura. Foi também fundador da influente Revista de Occidente, onde reuniu intelectuais de toda a Europa. Seu estilo literário, claro e sofisticado, tornou suas ideias acessíveis sem perder profundidade.

Pensar es una forma delicada de sentir la realidad.

Ortega y Gasset, El Espectador, Tomo II (1917)

O médico, filósofo e humanista espanhol Pedro Laín Entralgo (1908–2001), um dos maiores estudiosos de Ortega, definiu-o assim:

Uno de los pocos pensadores que lograron casar filosofía y periodismo sin que ninguno de los dos saliera herido.

Laín Entralgo, Razón y ser de Ortega (1955)

Outro eco importante veio de fora da Espanha. O crítico literário americano Harold Bloom (1930–2019), em entrevista à The Paris Review (1989), comentou:

Ortega y Gasset antecipou com lucidez a crise da autoridade cultural. Ele via a decadência do critério como um sintoma da decadência do espírito.

Ortega morreu em 18 de outubro de 1955, mas sua obra segue mais viva do que nunca. Em tempos de excesso de informação e superficialidade digital, suas advertências sobre a diluição do pensamento e da cultura ganham nova urgência. Lê-lo hoje é um exercício de recuperação do espírito crítico, da densidade humana, da vida pensada.

“Pensar es una forma delicada de sentir la realidad.”
— Ortega y Gasset, El Espectador, Tomo II (1917)

E se, ao final, nos perguntarmos como atravessar esse tempo acelerado e frágil, talvez a resposta esteja numa paráfrase orteguiana: não somos apenas nós e nossa circunstância, mas aquilo que fazemos delas com lucidez, coragem e consciência. Pois, como dizia o próprio Ortega, “la vida es una serie de colisiones con el futuro; no es el sumatorio de lo que hemos sido, sino de lo que anhelamos ser.”

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