A saga Aguilar: o sonho editorial que cruzou o Atlântico

De Madrid ao Rio de Janeiro, a travessia de uma dinastia de editores cujo legado encontrou em José Aguilar o ápice — e no Brasil, um novo paradigma do livro.

A saga Aguilar: o sonho editorial que cruzou o Atlântico

Poucas histórias editoriais condensam, como a da família Aguilar, a fusão entre vocação, rigor e drama familiar. Fundada em 1923 em Madrid por Manuel Aguilar Muñoz, a Editorial Aguilar nasceu como um projeto de excelência e democratização da leitura. Dela emergiria, algumas décadas depois, uma linhagem marcada por rupturas, travessias e persistência: José Aguilar Samper, sobrinho de Manuel, herdeiro do ofício e do espírito do tio, levaria o nome e a visão da casa espanhola para o Brasil, onde criaria um selo que se tornaria referência definitiva — a Editora José Aguilar Ltda., depois conhecida como Nova Aguilar.

José Aguilar nasceu em 1913, em Soneja, Castellón, e formou-se editor ao lado do tio. Um dos relatos mais comoventes sobre sua trajetória foi dado em 2013 por seu filho, José Manuel Aguilar de Ben, e recolhido por María José Blas Ruiz, pesquisadora da Librería del Prado e autora de Aguilar: Historia de una editorial y de sus colecciones literarias en papel biblia (1923–1966). Nesse testemunho, José Manuel rememora com precisão e afeto a vida do pai: “Muito jovem começou a formar-se como editor, junto a seu tio Manuel... Aprendia alemão, o ofício de editor.” Essa formação artesanal e cosmopolita moldou o caráter de um editor obstinado, avesso a dogmas e dedicado inteiramente ao livro. Durante mais de duas décadas, José trabalhou na editora de Madrid, tornando-se, nas palavras do filho, “a mão direita do tio — o que fechava contratos iniciados por ele, o que executava suas iniciativas.”

A ruptura veio em 1958, quando Manuel, já septuagenário, recusou-se a embarcar em nova empreitada. O conflito entre visões — o tio mais conservador, o sobrinho mais aventureiro — rompeu também laços familiares. “Aquela desavença empresarial, que terminou com a saída de meu pai da editora e sua ida ao Brasil... teve graves repercussões familiares”, recorda José Manuel Aguilar de Ben. José partiu para o Rio de Janeiro levando consigo não apenas a experiência, mas o ideal de fazer do livro uma forma de permanência. Seu ex-libris resumia o credo: “Mais alto.”

No Brasil, José Aguilar transplantou para o português uma ideia inédita de edição. Suas coleções em capa dura, papel-bíblia e estojos de luxo traduziam uma estética do livro total — ao mesmo tempo objeto de arte e veículo de saber. A proposta era fiel ao espírito europeu, mas adaptada à língua e aos autores do Brasil e de Portugal: Camões, Eça de Queirós, Machado de Assis, Rui Barbosa, Euclides da Cunha, José de Alencar, Fernando Pessoa, Jorge Amado, entre tantos outros. A Editora José Aguilar Ltda. assumia assim um duplo papel: preservar o cânone e formar um público que enxergasse o livro como patrimônio.

As primeiras edições, lançadas entre 1958 e o início dos anos 1960, são hoje o coração dessa aventura editorial. Títulos como Romances completos, de Cornélio Penna (1958), e Obra completa, de José de Alencar (1958), revelam um padrão até então inédito no país: aparato crítico exaustivo, notas, cronologias, variantes textuais e introduções assinadas por especialistas. Eram livros concebidos como sínteses do saber, em que a leitura se confundia com a própria história literária. Cada volume era um monumento tipográfico — um livro-biblioteca.

Essas edições inauguraram, silenciosamente, um novo paradigma editorial brasileiro. Antes da José Aguilar, poucos autores nacionais haviam recebido tratamento integral, em volumes críticos e duráveis. A partir dela, o leitor brasileiro passou a reconhecer o livro como objeto de cultura e de prestígio intelectual. A influência foi duradoura: muitas editoras posteriores — acadêmicas, universitárias e comerciais — herdaram, direta ou indiretamente, esse padrão de acabamento e curadoria textual.

Com o passar das décadas, a Nova Aguilar, já sob outros donos, continuou a reeditar clássicos e a manter viva a estética do papel-bíblia e da capa dura. Mas é nas primeiras edições de José Aguilar que reside o núcleo mítico dessa saga. Elas materializam um ideal: o de que editar é tanto preservar quanto interpretar o passado. Seu valor para colecionadores vai além da raridade — é simbólico. Cada exemplar sobrevivente traz as marcas do tempo, do uso e da fragilidade de um país que nem sempre cuidou dos seus livros.

Hoje, encontrar uma primeira edição Aguilar em bom estado é quase milagre. O baixo senso de preservação de bens culturais no Brasil transformou esses volumes em relíquias. O papel-bíblia escurece, as lombadas se rompem, as sobrecapas se desfazem. E, no entanto, há nelas uma beleza melancólica: o desgaste que denuncia o uso é também a prova de que esses livros cumpriram sua função civilizatória — circularam, foram lidos, ensinaram a ver o livro como obra e não apenas como mercadoria.

José Aguilar morreu em 1987, após uma vida inteiramente dedicada ao ofício. Seu filho resumiu com sobriedade e ternura: “Meu pai foi editor toda a sua vida, desde os 19 anos até a morte, aos 75... É talvez o mais completo de todos os Aguilar.” Atravessando mares, regimes e mercados, ele preservou o espírito do editor que acredita que cada livro é uma forma de eternidade.

A saga Aguilar, enfim, é mais do que um capítulo da história do livro — é a memória de um ideal. Um sonho que começou nas prensas de Madrid, encontrou no Brasil sua expressão mais alta e permanece, ainda hoje, nas prateleiras gastas dos que sabem que, em certos volumes, o tempo não apaga: apenas amarela com dignidade.

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