Como compreender o destino de um livro que sobreviveu à Revolução Francesa para reaparecer no limiar da história do Brasil? Este exemplar de La Religion vengée, do cardeal François-Joachim de Pierre de Bernis, é mais que uma raridade bibliográfica — é um elo material entre dois mundos em transição, entre a Europa das coroas e o Atlântico das migrações políticas.
Publicado em Parma em 1795, pouco após a morte do autor, o poema representa a resposta de Bernis ao colapso espiritual do século das Luzes. Diplomata refinado e confidente de Madame de Pompadour, o cardeal conheceu os bastidores do poder monárquico e eclesiástico antes de testemunhar a derrocada do Antigo Regime. Em La Religion vengée, propôs reconciliar fé e razão, defendendo a moral cristã contra o materialismo moderno. Escreve, nos versos inaugurais: “Dieu créa l’ange et l’homme innocents et parfaits... Mais l’orgueil perdit l’ange” — “Deus criou o anjo e o homem inocentes e perfeitos... mas o orgulho perdeu o anjo.” É a advertência de um homem que vira o orgulho político e filosófico precipitar a ruína das instituições.
Trata-se de uma das primeiras edições da obra, impressa nas oficinas de Giambattista Bodoni, o mestre tipógrafo da Europa neoclássica. Mas o que a distingue não é apenas a perfeição material do impresso — é a sua história. Em 1808, D. Domingos de Sousa Coutinho, então ministro plenipotenciário de Portugal em Londres, ofereceu este volume ao núncio apostólico D. Lorenzo Caleppi. A dedicatória, datada de Londres, revela um gesto diplomático num momento de ruptura: Portugal preparava a transferência de sua corte para o Brasil, sob ameaça de invasão napoleônica, e o Vaticano acompanhava com atenção cada movimento.
Caleppi, homem de confiança da Santa Sé, seria designado pouco depois para seguir a monarquia no exílio, tornando-se o primeiro núncio papal no continente americano. Sua missão não era apenas pastoral, mas política: representar o Papa junto a uma corte deslocada e preservar a continuidade eclesiástica num território onde a Igreja buscava redefinir-se. Nesse contexto, o presente de Sousa Coutinho ganha um significado notável — um poema sobre a fé restaurada oferecido no exato instante em que o império português e a autoridade papal atravessavam o oceano em busca de refúgio e recomposição.
Há aqui uma coincidência simbólica de grande densidade histórica. Bernis, que servira como embaixador junto à Santa Sé e negociara a supressão da Companhia de Jesus, representava o fim de uma diplomacia clerical antiga; Caleppi, ao contrário, personificava a sua reinvenção no Novo Mundo. O exemplar, entregue de um estadista português a um prelado romano, torna-se assim testemunho da passagem de uma era: da religião “vingada” na poesia à religião sobrevivente na história.
Poucos volumes dessa edição resistiram ao tempo com integridade. A pureza gráfica bodoniana e o papel de linho calandrado conservam-se neste exemplar com notável dignidade — mas o seu valor não se limita à conservação material. É, possivelmente, o único exemplar conhecido que documenta, com dedicatória e proveniência verificáveis, o diálogo entre Londres, Roma e o Rio de Janeiro às vésperas da formação do Estado brasileiro.
Na biografia dos objetos, há instantes em que a matéria se converte em documento. Este La Religion vengée é um desses casos raros: uma obra poética que, pela força de sua trajetória, assume o estatuto de testemunho diplomático. Não é apenas o eco de uma fé antiga, mas o vestígio tangível de um momento em que o catolicismo europeu e a monarquia portuguesa se reinventavam nas margens do Atlântico.
Entre as poucas cópias sobreviventes dessa primeira edição, nenhuma carrega tamanho simbolismo histórico. Este volume não é apenas um livro preservado — é um fragmento do próprio movimento que transportou a religião, o império e a palavra impressa do Velho para o Novo Mundo.